13 de fev. de 2013

Como um livro me fez pensar sobre o que quero ser

Não vou negar: certas coisas na vida a gente só enxerga quando é tarde, mas mesmo assim é bom manter o otimismo, tentar aproveitar ao máximo o tempo que resta.

No meu curso, tenho uma matéria que se chama PIESF. Eu não consigo me recordar agora, exatamente o que significa essa sigla, mas entenda na minha definição: nós vamos pro "posto de saúde" (conhecido na área da saúde como UBS ou Unidade Básica de Saúde), conhecer a população, interagir com ela e a equipe e aprender as atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS), nem sempre cumpridas, mas que felizmente ajudam algumas pessoas. Então, nessa matéria, o maior aprendizado que tive foi como tratar meus pacientes, que são humanos. Pode parecer bobo ressaltar isso, mas a humanidade das pessoas transcende os limites que nós enxergamos sem antes pensar. Avaliar não somente a doença, mas também a mente, os desejos, a condição social, os preconceitos, os problemas educacionais e familiares das pessoas é trabalho do médico, é função que aprendi nessa matéria.

Bem, minha professora, Raquel Rangel Cesaro (se não desejar seu nome publicado aqui, eu retiro) é participante desse processo de despertar minha consciência para uma medicina mais humanizada. Ela alcançou o êxito, pelo menos comigo, pois eu me sinto e percebo um profissional melhor agora.
Como proposta de fim de ano, a Raquel decidiu entregar alguns livros aos seis colegas que formam o nosso grupo do PIESF. Inicialmente, leriamos o livro nas férias de dezembro a janeiro e depois fariamos uma reflexão sobre o que foi visto. Meu livro foi O 11º Mandamento, de Abraham Verghese. Não fazia ideia do que se trata o livro, até pesquisar: "Moisés escreveu dez, não onze mandamentos", fiquei pensando nisso, mas não me esforcei muito.



Devo dizer: adiei o livro o máximo que pude, porque tive que viajar, malhar, dirigir, ler outras coisas, rever amigos, jogar, assistir documentários e filmes. Usei tudo como desculpa, mas na verdade, eu ainda tentava digerir A Torre Negra, que me custou quatro anos pra ser terminada (sete livros). Ainda tento digerir a Torre, mas acho que vou precisar reler, pra me sentir tudo novamente.
Enfim, adiei até quando pude. O livro ficou lá, na estante, solitário. Então, bem tarde, no final das férias, decidi lê-lo.

Logo no primeiro capítulo, me deparo com um personagem - Marion Stone - que me fez pensar em mim mesmo. Marion é cirurgião (arte que eu pretendo praticar) e tem uma visão do passado muito parecida com a minha (além de, pelo que percebi, fazer reflexões mentais que eu costumo fazer também, quase na mesma frequência e mesmo espírito crítico).
De cara, decidi que esse livro iria me envolver por muito tempo. Não pelo seu tamanho (pequeno, seiscentas e poucas páginas), mas pela história, que vai morar na minha mente, junto de tantas outras. Eu sempre fui uma pessoa que leu livros atrás de livros. É como um vício, eu preciso ter algo pra ler, eu me sinto vazio quando não leio nada.

O livro tem diversas frases de efeito pra cirurgia - aforismas. Eu gosto dessas frases, principalmente daquelas que ficam na cabeça como uma litania, sempre repetidas em momentos chave. De todas as frases, uma vou guardar pra sempre, antes, durante e depois de qualquer procedimento cirúrgico: "A operação mais bem sucedida é a que você decide não fazer". Observe, releia a frase, sinta a profundidade. Dita por um cirurgião, a frase não deprecia a arte de manipular instrumentalmente o corpo do paciente: muito pelo contrário, esta frase valoriza aquele momento antes da cirurgia, em que o médico pensa "será necessário o procedimento?".

E aqui está o aforisma mais importante da medicina. Não está no livro, mas devia estar dentro da cabeça de todos os médicos:

"A vida é breve, o aprendizado é longo; a ocasião passageira; a experiência perigosa, a decisão, dificil. O médico não deve apenas estar preparado para fazer o que é correto, mas deve também conseguir a colaboração do paciente, dos atendentes e de todos que cercam o doente." Hipócrates - Aforismo nº 1             

Mesmo não sabendo que área dessa arte irei seguir, sei que todo o meu esforço, meus estudos, meu suor, será destinado para o meu bem estar, o da minha equipe, o do paciente e de sua família.
Quando comecei o livro, não sabia exatamente o motivo por querer ser cirurgião. Dizem que tenho mão boa, mas isso é muito pouco, afinal, eu nunca operei ninguém. Dizem que sou frio, que aguento pressão e sei enfrentar situações complicadas sem titubear, mas isso é pouco ainda, afinal, muitas outras profissões seriam boas pra alguém com essas características.
O que mais me chama a atenção na cirurgia é a capacidade de fazer com as mãos o que está dentro da cabeça. É ter a visão privilegiada da máquina, do corpo humano em funcionamento, como está no livro, "ter uma visão de camarote desse incrível show". É consertar algo que porventura não funcione bem. É dar ao paciente algo que ele me permitiu trazer de volta, a saúde. É bonito pensar assim, gosto de ter esses pensamentos quando cirurgia me vem à cabeça. 

Mas voltando ao livro, descobri que o décimo primeiro mandamento é "Não operarás um paciente no dia de sua morte". É uma frase muito sábia, mas carregada de tristeza.
Descobri no livro diversos aforismas médicos, coisa que sempre gostei, de verdade. Me peguei, novamente, lendo uma história sem conseguir parar, sem conseguir me desvencilhar. Eu enxerguei o que Marion contou, eu senti a raiva, a alegria, a insegurança, tudo. Eu percebi que, apesar de não ensinar medicina, o livro ensina medicina. Não nas partes em que fala de doenças, de intervenções cirúrgicas, de sinais e sintomas. Mas sim na parte que fala da relação médico-paciente. Na parte em que Marion exibe suas diversas faces humanas. A medicina depende, sim, de conhecimentos teóricos, mas acima de tudo, o médico que não conhece o homem nunca vai curar ninguém.

O romance de Marion, seus desejos, suas frustrações. Eu já vivi essas frustrações por amor. Eu já me perdi, não tanto quanto ele, mas consigo compreender seu sofrimento. Coitado, logo ele, que consegue tirar o sofrimento alheio, mas não sabe tratar o seu próprio. Eu chamo isso de ironia.
Senti a tristeza de Marion, por se separar de Shiva. Realmente senti pena e angústia. E, com toda sinceridade, compreendi o sentimento que Marion teve, a liberdade quando recebeu a notícia de Genet,  no fim do livro. É um dos sentimentos mais patéticos de todos, mas é tão precioso como um copo d'água no meio do deserto mais seco e árido. 

Está mais do que óbvio que Marion conta sua história no livro, mas eu me identifiquei com Thomas Stone (pai de Marion) acima de qualquer outro personagem. Foi lendo Thomas, Imaginando-o, que descobri meus motivos para ser cirurgião. Exatamente o que ele faz, é o que eu quero fazer.

Ler e reler a teoria, pois eu tenho plena consciência de que nunca saberei tanto quanto é necessário para não errar. Me dedicar de corpo e alma a alguém indefeso, necessitado, confiante que eu farei o que é certo. Manejar com destreza o bisturi, as tesouras, as agulhas, usando cada músculo e nervo em meu corpo para que o trabalho seja perfeito; fazer os instrumentos se tornarem parte de meu corpo, me tornar o próprio instrumento na cirurgia. E no final, apesar de saber minhas limitações humanas, tentar buscar meu paciente da divisa entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, trazê-lo de volta o mais bem e funcional possível, graças a meu esforço e a colaboração da equipe, que forma comigo um só corpo, um só multi-instrumento.

Thomas Stone sofreu muito. Ele é sim uma pobre alma. Thomas vendeu sua vida. Numa palestra, certa vez um médico disse "a medicina é a esposa mais ciumenta de todas". Thomas é prova disso, todos os momentos em sua vida cruzaram-se, querendo ele ou não, com a antiga arte de Ptah, Imhotep, Esculápio, Chiron, Hipócrates, Galeno, Avicena e tantos outros.
Eu quero ser um Thomas Stone, mas sem sofrer tanto quanto ele. Eu senti pena dele, mas também senti que ele me deu a luz para a razão, meus motivos, minha explicação.

Eu quero ser O cirurgião eficaz. Sim, disso eu tenho certeza na minha vida. Não importa o que custar, eu quero ser. Eu me esforçarei pra merecer, vou aprimorar cada um dos tendões, ossos, músculos, nervos, bursas,  vasos, ductos e tudo mais que for necessário. Essa é uma das duas certezas que tenho. A outra é a morte, certa pra todos nós.

Então Raquel, você queria uma reflexão do que achei do livro? Você queria que eu dissesse o que ele mudou na minha visão sobre medicina? Queria que eu desse opiniões, não é? Pois aqui está. O livro me iluminou, não no sentido de me dar algo pra fazer, mas no sentido de me mostrar o motivo pelo qual fazer. Espero, sinceramente, que o próximo leitor desse livro em sua lista seja alguém que enxergue tanto quanto enxerguei, ou até mais.

Como diria Dom Cobb, personagem de Leonardo diCaprio no filme A Origem, "o parasita mais perigoso é uma ideia, implantada bem fundo na mente. Ela se espalha como um câncer, de modo silencioso e sem aviso, ela toma tudo". O 11º Mandamento implantou a ideia de ser cirurgião no fundo da minha mente. Essa é a minha reflexão, minha missão.

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