J era um garoto comum. Tinha 19 anos e se preocupava pouco com isso.
J estudava todos os dias, J se divertia nos fins de semana, J apostava na mega-sena e nunca ganhava.
J não trabalhava, apenas estudava. Era um estudante normal, nada acima ou abaixo da média, mas numa curva crescente de aprendizado. J fazia medicina, um dia queria se tornar neurologista. J sabia tudo que era necessário sobre o sistema nervoso, seu funcionamento, sua anatomia, sua fisiologia, a fisiopatologia das principais doenças. J era, na pior das hipóteses, um bom candidato para a neurologia.
J economizava seu dinheiro, para livros e uma moto. Ele adorava ler livros literários, já tinha lido quase tudo do Machado de Assis e sempre que possível, gostava de ler Carlos Drummond de Andrade. Sua mais nova aquisição era a Antologia Poética do Drummond.
J não tinha namorada, mas sempre tentava comparecer nas festas. J era levemente desajeitado - na verdade, J era uma derrota. Mas ele não era bobo, não por inteiro. J era apaixonado por E, há muito tempo. Eram conhecidos de infância, se divertiam juntos. Ela o ensinou a tocar violão, nas férias de 2008. Ele a ensinou a escalar árvores, nas férias de 1998.
Já fazia muito tempo que J não conversava com E. Dois meses e doze dias, pra ser mais exato.
J tinha uma bicicleta, que usava pra ir pra faculdade todos os dias. Também aproveitava pra andar pela cidade, durante o fim de semana.
Por fora, J parecia normal, mas por dentro, J estava em cacos. Havia brigado com E, durante um jantar na casa dos pais dela, um jantar que servia peixe assado, o peixe que ele havia pescado. J se sentia um idiota por ter brigado, J se sentia um derrotado por não falar com E.
A briga foi idiota: tudo porque E estava indo estudar em outra cidade, longe de J e não pretendia fazer prova de transferência. J estava, literalmente, se afastando de E, cada dia mais. Mas ele não conseguia ter uma chance para conversar com ela, para se declarar. J não se dava essa chance.
J era um otário, J amava E. O amor é um dos piores venenos, mas ao mesmo tempo, é um dos mais potentes remédios. Mesmo assim, J não sabia dosar, estava se afogando em doses venenosas.
J decidiu visitar E. J pretendia se declarar, J pretendia colocar para fora o sentimento que o oprimia a deus sabe quanto tempo.
J se dirigiu para a casa de E. Era um caminho de meia hora, na bicicleta.
J atravessaria a cidade, da faculdade para seu bairro, ate chegar na casa de E.
J já sabia tudo que iria dizer, tinha tudo planejado. Primeiro, ele abraçaria E com todas as suas forças, mas carinhosamente. Em seguida, ele pediria silêncio, pois o monólogo dessa vez seria dele. J poderia dizer, do fundo da alma, tudo que sentia, todo o sentimento que nutria, todas as esperanças, planos, visões do futuro. J diria que aguentaria a distância se fosse preciso. J diria que conversariam por telefone, internet, sinais de fumaça: qualquer coisa que impedisse essa distância, que provocava angústia diariamente em seu peito. J sabia que esse discurso parecia apelativo, mas ele não sabia o que mais dizer.
J estava confiante. Pateticamente confiante. Um dos efeitos do amor é provocar alucinações e J estava sofrendo disso, naquele exato momento.
No centro da cidade, um Golf atravessava o percurso a 100km/h. Aquele velho percurso, que passava pelo principal ponto comercial da cidade e tinha por volta de 2km de extensão. Naquele horário, esse percurso era facilmente atravessável pela falta de pessoas e carros. Era por volta de 14h.
No cruzamento da rua 7 com a rua Marechal Deodoro, bem no centro da cidade, o Golf atingiu J em cheio. Num primeiro momento, a cabeça de J foi de encontro ao carro, depois, este arrastou suas pernas. O choque foi fatal, destruidor. Pedaços de seu couro cabelo se rasgaram. A língua de J foi cortada ao meio, por seus próprios dentes. O crânio de J se abriu, deixando a mostra o frágil cérebro. J fraturou suas duas pernas, depois de ser lançado 3 metros de distancia do carro. O motorista, ainda fora de si, atropelou J novamente, agora destruindo seu peito e seu braço esquerdo, afundando todas as costelas em direção ao coração e aos pulmões. J vomitava sangue, enquanto defecava e chorava de dor. Os intestinos de J não obedeciam mais o comando de trabalharem pacificamente. A bexiga de J se relaxou, liberando toda a urina lá contida. A dor foi intensa, contínua, destruidora, enquanto durou. Durante o acidente, J percebeu a gravidade da coisa. Ele só tinha um desejo, antes de atingir o solo: falar uma ultima vez com E. Mas J nunca mais teria essa chance. J morreu, no asfalto, fedendo, sujo, suado e cheio de remorsos. Enquanto isso, os miolos de J estavam espalhados, horrorizando os transeuntes.
Tudo poderia ter sido mais fácil se, dois dias antes, J tivesse aproveitado o convite da Sra. Mãe de E para jantar novamente em sua casa, pois "E está sentindo muito a sua falta, ela fala sobre você quase todo dia e está pensando em tentar o vestibular aqui, mais uma vez". Mas o orgulho falou mais alto na cabeça de J, aquela cabeça que estava colorindo o asfalto, com tons de rosa, vermelho e branco.
No enterro, todos chorando. E, carregando uma flor branca, depositou-a em cima do caixão de J. E adorava J, ele era um exemplo que ela seguia, ele era o Cruzeiro do Sul em seu céu, muitas vezes nebuloso e duvidoso. J havia sido um bom amigo, E desejava que ele fosse mais que isso, mas ela tinha medo de estragar a amizade, enquanto ele tinha medo de dar um passo em falso e jamais vê-la novamente.
A vida é uma tragédia, interpretada por dois e assistida por todos.
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